quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Dança e disciplina

Por Joice Balboa

Naquela garagem, agora transformada em um pequeno estúdio de dança, as batidas do hip hop começavam a preencher o ambiente e a vibrar nos corpos ali presentes. Aos poucos as pernas me conduziam pela sala, sem nenhum sentido, apenas iam. A velocidade aumentava aos poucos, acompanhando a melodia. E quando já estava correndo, toda a velocidade recuou, caminhei lenta e calmamente, mas logo já estava correndo com toda a força novamente. As variações entre alto, médio e baixo, se intercalavam cada vez mais. No alto, correndo ou caminhando ereta. No plano médio, agachada, com os joelhos flexionados. E no baixo, apoiada no chão, sentada, deitada ou caida.

A professora, negra com expressões fortes, apesar de não aparentar, já chegou a flor da idade. Os cinquenta anos completados no último 27 de dezembro, foram praticamente todos dedicados a dança. Desde muito pequena despertou interesse pelo meio artístico, assistindo as dançarinas do programa do Chacrinha. Mas, a professora Xuxu, como é mais conhecida, só foi conhecer e entender a dança, quando começou a ver alguns espetáculos aqui em Florianópolis, lá por volta de 1975/76.

Aquecidas. Prontas para movimentar o corpo conforme as orientações da professora e da música. O som contagiador começava a ser marcado pelos movimentos. Explosão de braços e pernas, tronco e cabeça, mãos e pés. Tudo era envolvido por aquele conjunto de notas musicais. E o espelho refletia. Refletia o esforço e dedicação para alcançar a perfeição do movimento. 
Cinco, seis, sete, oito. Já era hora de ensaiar a coreografia, o afro e o contemporâneo. Em grupo e solo, respectivamente. Primeiro, no “palco” vazio, entram seis bailarinos de cada lado, oito tempos para ir até o centro e mais seis para cada um chegar ao seu lugar, formando três fileiras. Começa a coreografia, e os erros também. A professora nos explicava que deveríamos manter os braços levantados a frente do tronco na altura do peito, nunca mortos ou caídos. As fileiras tortas, um invadindo o espaço do outro. Pára. Começa tudo de novo, sem música para memorizar. Agora com a música até todo mundo fazer certo.

Repetição. Palavra de ordem para ensaiar. Xuxu nos lembra, a cada aula, que é repetindo, uma, duas, dez, quinhentas vezes, que iremos corrigir e executar a coreografia sem erros. Mas é preciso fôlego para ficar três horas repetindo a coreografia sem parar. Os braços e os pés são os mais desobedientes dessa regra, costumam ficar na metade do caminho. Braços cruzados pela frente e levados pra cima precisam de intesidade para dar a idéia explosão, fica mais vivo quando o olhar é direcionado para cima.

A ex-garagem reformada, de um lado tem uma porta de vidro, que dá para a área dos fundos com um piscina, no muro da piscina a professora pintou “Oficina do corpo” e uma bailarina. Do outro, fica o portão que já não abre mais, serve apenas como parede. À frente, as folhas de espelho que ocupam 80% da parede, no canto da direita fica a mesa com o computador, os amplificadores, e as pilhas de CD’s. A parede oposta aos espelhos é decorada com dois quadros retangulares na vertical até o chão, que escondem as antigas abertudas de janela da casa, em frente ao computador fica a entrada e na outra ponta tem um porta de madeira para o vestiário.

Na diagonal, battement frente. As pernas estendidas, sobem alternadamente, em 90º ou mais, paralelamenta uma da outra, e volta, como um movimento de batida. Olha a postura. Cuidado para não desencaixar o quadril. Matenham os braços suaves, como se estivessem segurando uma bola. São os avisos que a professora nos dá enquanto atravessamos a sala fazendo o battement. O braço em formato de bola - a primeira posição - é uma das coisas que mais tenho dificuldade de fazer, é algo que me exige pensar. Primeiro os ombros tem que estar completamente relaxados, a postura a mais ereta possível, abdomem contraído, queixo paralelo ao chão. Agora a bola invisível tem que fazer os meus braços curvarem a frente com suavidade, as mãos tem que dar continuidade ao movimento com leveza, nada está rígido. Cotovelos levemente flexionados, levando os braços a frente do tronco na altura do peito, não chega a ser 90º, é um pouco menos. E um leve sorriso no rosto para deixar a posição graciosa.

Mais complexo ainda são as combinações de posições e movimentos, como o tombé pas de bourreè: a perna direita flexionada e a esquerda para trás estendida, o corpo levemente inclinado a frente, e os braços em primeira posição, cruza a perna esquerda estendida por trás e abre com a perna direita, ereta e os braços abrindo em segunda posição, a combinação termina levando o pé a frente, em terceira posição e os braços também em terceira. E esses são os mais simples, quando as aulas eram na outra sala, a gente ia pra barra e as sequências dos exercícios eram mais longas. Sem a barra de balé, temos que fazer os exercícios no chão, com mais dores e dificuldades. Como a garagem não era muito ampla, se as barras tivessem sido instaladas, o espaço para os ensaios seria mais reduzido ainda.

O alongamento, depois de tanto trabalhar o corpo, é essencial. Primeiro para amenizar as dores e segundo para manter a flexibilidade em dia. Dobrada ao meio eu tocava o chão com as mãos, as pernas esticadas na largura do quadril e cabeça solta, olhando para trás por entre as pernas. As vertebras se encaixam e alongavam, a parte posterior da coxa esticava e relaxava. Sentada com as pernas abertas e tronco inclinado à frente, braços apoiados no chão e pernas esticadas, olhando para baixo. Sinto a abertura aumentar aos poucos e o ligamento da virilia doer. Minha perna começa a tremer. Relaxo em posição de fetal, rolo para um lado e para o outro. Apenas respiro.

Suor, cançasso e sede, é o resultado de quatro horas de aula. A coreografia avançou, agora mais limpa e memorizada. O próximo passo é dançar com naturalidade, sem que se faça notar que é algo mecânico e memorizado. Temos apenas mais quatro tardes de sábado antes do espetáculo.

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